PARECERES TECNICOS

quinta-feira, maio 12, 2005

SEGREDO PROFISSIONAL DO SOLICITADOR DE EXECUÇÃO

PARECER

Emitido por Dr. JOÃO PACHECO DE AMORIM,Advogado, Mestre em Direito Público, a pedido do Conselho Regional do Norte.

DA OBRIGAÇÃO DE SEGREDO PROFISSIONAL DO SOLICITADOR DE EXECUÇÃO, NOS TERMOS DO ARTº 110º, DO E.C.S.”


1. Nos termos do art. 110º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores(1),

1. O solicitador é obrigado a segredo profissional no que respeita: a) A factos referentes a assuntos profissionais que lhe tenham sido revelados pelo cliente, por sua ordem ou comissão, ou conhecidos no exercício da profissão; b) A factos que, por virtude de cargo desempenhado na Câmara, qualquer colega ou advogado, obrigado, quanto aos mesmos factos, a segredo profissional, lhe tenha comunicado; e) A factos comunicados por co-autor, co-réu, co-interessado do cliente, pelo respectivo representante ou mandatário; d) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivo representante ou mandatário lhe tenha dado conhecimento durante as negociações com vista a um acordo.
2. A obrigação do segredo profissional existe independentemente de o serviço solicitado ou cometido envolver representação judicial ou extrajudicial e de dever ser remunerado, bem como de o solicitador ter aceite, desempenhado a representação ou prestado o serviço.”


Não subsiste, pois, qualquer dúvida quanto à vinculação do exercício da actividade de solicitadoria ao segredo profissional, nos termos do artigo transcrito. De facto, o dever (e o direito) ao segredo profissional mostra-se essencial à imperiosa preservação da independência e dignidade reclamada pelo exercício da actividade de solicitadoria. O art.° 110º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores reproduz para a profissão de solicitador, com sensíveis modificações, o preceito homólogo do Estatuto da Ordem dos Advogados(2). Na verdade, a identidade normativa dos dois Estatutos é reveladora de uma significativa aproximação deontológica entre as duas profissões liberais. O que por si só justifica que, com as devidas adaptações, se aplique aos solicitadores o tratamento doutrinal que o segredo profissional tem recebido no seio do exercício da advocacia.
É, pois, com segurança que se pode concluir que é tripla a razão de ser da consagração estatutária do dever (que é ao mesmo tempo um direito) do solicitador guardar segredo sobre factos e documentos de que tome conhecimento no exercício da sua profissão, a saber, i) a indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre solicitador e cliente; ii) o interesse público da função do solicitador, enquanto agente activo da administração da justiça; iii) a garantia do papel do solicitador na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social(3).

2. Contudo, a questão que ora nos é colocada centra-se na especificidade do exercício de funções de solicitador de execução e da aplicação do art.° 110º do Estatuto ao exercício dessas funções. Sistematicamente, comece-se por dizer que, muito embora o exercício da solicitadoria de execução mereça um tratamento autónomo no Estatuto — cfr. Cap. VII — com a previsões especificas em algumas matérias, como sejam os fundamentais temas do regime das incompatibilidades e impedimentos, ainda assim deve entender- se que, em tudo aquilo que não colidir com o regime específico da solicitadoria de execução, o regime “geral” aplica-se aos solicitadores de execução. Em causa, portanto, o dever de segredo profissional. Ora, para aferir da existência de alguma colisão entre o dever de segredo profissional e as normas previstas para a solicitadoria de execução, convém antes conhecer quais os sinais distintivos desse tipo de solicitadoria que justificam, desde logo, a existência de normas autónomas a regulá-lo.

3. Com a reforma da acção executiva ocorrida em 2003, foi atribuído aos agentes de execução — rectius, solicitadores de execução — a iniciativa e a prática dos actos necessários à realização da função executiva, conseguindo-se (ou pretendendo- se conseguir) por essa via, libertar o juiz das tarefas processuais que não envolvam uma função jurisdicional, o que permite uma maior dedicação a todas as questões pendentes que envolvem essa função, bem como libertar os funcionários judiciais da realização de tarefas fora do tribunal, permitindo-lhes canalizar esse tempo para as funções a desempenhar dentro do tribunal. Era este, fundamentalmente, o mote da criação da figura do agente de execução. Desde sempre ficou claro que a atribuição das funções que hoje exercem os solicitadores de execução nunca iria por em causa os direitos e garantias fundamentais das partes no processo, não só pelo elevado nível de competência e formação que aos solicitadores de execução é exigido para que possam exercer essas funções, mas também porque o juiz continua a ter um papel fundamental no processo executivo, aele estando reservadas as funções de carácter jurisdicional(4), bem como inclusive a autorização, mediante prévio despacho judicial. de certos actos da competência do solicitador de execução.
Interessam estas considerações para concluir que o solicitador de execução assume, com as suas funções, a realização de muitas tarefas até aí levadas a cabo pelos funcionários de justiça. A atribuição destas funções ao solicitador mais não é, então, do que mandatar um agente privado para a realização de certas tarefas públicas no âmbito de um procedimento judicial, agindo este de acordo com as directrizes do tribunal ou, consumindo a expressão da lei, “na dependência funcional do juiz da causa”(5)

4. E esta é uma característica relevante para a obrigação de segredo profissional no exercício de funções de solicitadoria de execução. Senão vejamos. A obrigação de guardar segredo nas profissões jurídicas está intimamente relacionada com a relação de confiança que é imprescindível que exista entre advogado e solicitador e o cliente (e outros de alguma forma relacionados com este). Nesse sentido escreve ORLANDO GUEDES DA COSTA(6), em relação à Advocacia, mas com inteira pertinência para os Solicitadores, que “Esta confiança está na base do segredo profissional como dever do advogado para com o cliente, dever ligado à natureza da missão ou da profissão do advogado, que um conhecido anexim popular assimila à do padre, proclamando que «ao advogado e ao padre deve dizer-se toda a verdade», mas é também fundamento do segredo profissional como autónomo dever estatutário da profissão de advogado para com a sociedade inteira, que na profissão de advogado deposita a maior confiança, dever estatutário designadamente para a contraparte do cliente ou os co-interessados do cliente e para com os respectivos advogados, todos destinatários ou beneficiários do segredo profissional tanto como o cliente.”
Sublinhamos o que parece ser o mínimo denominador comum da obrigação de segredo profissional: o cliente. Na verdade, é o que decorre da própria lei. Nos termos da ai. a) do n.° 1 do art. 110º do Estatuto estão vinculados ao segredo profissional os factos “revelados por cliente, por sua ordem ou comissão (...)“. E essa conexão com o cliente alarga-se com a vinculação ao segredo profissional dos factos “comunicados por co-autor, co-réu, co-interessado do cliente, pelo respectivo representante ou mandatário.”(7)
Ora, é neste ponto que julgamos existirem razões justificativas de uma diferente vinculação ao segredo profissional no caso dos solicitadores de execução. E isto por força das funções que lhes são cometidas.

5. Como já dissemos atrás, a função que o solicitador de execução desempenha é de cariz essencialmente público, de natureza idêntica à desempenhada anteriormente pelo oficial de justiça e pelo próprio juiz. Trata-se de um agente de justiça, de natureza privada, mas que prossegue fins públicos, estando ainda dotado das correspondentes prerrogativas de autoridade — o que o distingue fundamentalmente dos restantes auxiliares de justiça, que não detêm essas prerrogativas (os demais solicitadores e advogados).(8)
E da natureza das funções que exerce o solicitador de execução, essencialmente conexa com o exercício de poderes públicos de administração de justiça, decorre naturalmente a sua posição neutra e imparcial na instância. De facto, o solicitador não é parte nem mandatário de qualquer das partes. Ainda que, de acordo com a lei processual, o solicitador possa ser indicado ou designado por uma das partes, esta não exerce sobre aquele um poder de direcção, seja em que grau for. O solicitador de execução apenas está sujeito direcção e controlo do juiz da causa.
O que é o mesmo que dizer que os solicitadores de execução não têm clientes, e nem, consequentemente, existem co-autores, co-réus, co-interessados, mandatários etc..., destinatários primários da protecção que o dever de segredo profissional confere.
Todavia, não cremos que tal seja suficiente para desonerar por completo a obrigação de também os solicitadores de execução guardarem segredo profissional. É que sempre a parte final da al. a) do art. 110º do Estatuto seria passível de ser aplicada aos solicitadores de execução, quando estabelece a obrigação de segredo profissional referente a factos “conhecidos no exercício da profissão”, abrangendo aqui mais do que a relação com o cliente ou outros conexos. Por outro lado, por inexistirem esses receptores do privilégio do segredo profissional, e tendo em conta o carácter essencialmente jurisdicional do exercício de funções pelos solicitadores de execução, acreditamos que o grau de exigência do dever de segredo deverá ser entendido no sentido mais próximo do previsto para os Oficiais de Justiça e para os Magistrados Judiciais.
Assim, é estabelecido para os Magistrados Judiciais um dever de sigilo, que os obriga a não “fazer declarações relativas a processos, nem revelar opiniões emitidas durante as conferências nos tribunais que não constem de decisões, actas ou documentos oficiais de carácter não confidencial ou que versem assuntos de natureza confidencial.”(9)
Já os Oficiais de Justiça, além de adstritos aos deveres gerais dos funcionários da Administração Pública, estão ainda sujeitos ao dever específico de “não fazer declarações ou comentários sobre processos, sem prejuízo da prestação de informações que constituam actos de serviço.”(10)
Ora, aqui o denominador comum parece ser já não o cliente mas antes o processo. Será, pois, este o indicador pelo qual se deve guiar o dever de segredo profissional do solicitador de execução sobre factos conhecidos “no exercício da profissão”. O que não deixa de operar algumas alterações no âmbito do conteúdo do dever de segredo profissional. Senão vejamos.
As partes no processo em que intervém o solicitador de execução devem estar conscientes que este apenas está obrigado a guardar sigilo nas matérias referentes e constantes do processo, já não, cremos nós, quanto a outros factos que decidam transmitir-lhe mas desconexos com o processo em causa. Mais uma vez, as partes não são clientes do solicitador de execução.
Por outro lado, será também apenas relativamente a factos relacionados com o processo que subsistirá a necessidade de prévia autorização do presidente do conselho regional para a cessação da obrigação do segredo profissional, parecendo aqui que apenas resistirá a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do solicitador como fundamento do levantamento do segredo”(11). Na verdade, temos algumas dúvidas acerca da possibilidade de o solicitador de execução requerer o levantamento do segredo para a defesa dos interesses de uma parte no processo, uma vez que tal não está, como vimos, previsto na lei.


6. Em conclusão, somos de parecer que o dever de segredo profissional previsto no art.° 110.° do Estatuto da Câmara dos Solicitadores será de aplicar também aos solicitadores de execução, mas tão só na medida dos factos conhecidos no exercício da profissão (rectius, das funções de solicitador de execução) e que — exclusivamente — digam respeito ao processo em que esse conhecimento ocorreu.
Porto, 20 de Abril de 2005
Salvo melhor opinião, este é o Parecer de (João Pacheco de Amorim)

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1 – Aprovado pelo Dec.Lei nº 88/2003, de 26 de Abril
2 – Cfr.artº 87º. Do Estatuto da Ordem dos Advogados
3 – Cfr. Parecer do Conselho geral da ordem dos Advogados nº02/01, relatado pelo Exmº Sr. Dr.J.M.Ferreira Almeida.
4 - Assim é que. nos termos do disposto no art,° 808.° do CPC, ao juiz de execução compete, para além do poder geral de controlo do processo, proferir despacho liminar, julgar a oposição à execução e penhora, verificar e graduar créditos, julgar a reclamação do agente de execução, decidir questões suscitadas pelo agente de execução, pelas partes ou por terceiros intervenientes.
5 - Cfr. art.° 116.° do Estatuto da Câmara dos Solicitadores.
6 – Cfr. “Direito Profissional do Advogado”,pp.293
7 - Dispensamos aqui a análise das alíneas b) e d) do art. 110º do Estatuto uma vez que claramente não relevantes para o caso. Na realidade, a previsão da ai. b) (segredo profissional por exercício de cargo na Câmara) é independente do tipo de solicitadoria exercida. Já o caso da al. d) é específico do exercício da solicitadoria comum, porquanto as funções dos solicitadores de execução esgotam-se na actividade jurisdicional.
8 - Sobre a distinção entre a figuras dos meros auxiliares de justiça (solicitadores e advogados) e o exercício privado de funções públicas, ver o nosso estudo A liberdade de profissão, in «Estudos de comemoração dos cinco anos (1995-2000) da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, p. 596-782. Aí se destacava a solicitadoria (até 1976) com um dos exemplos do exercício privado de funções publicas. Com os solicitadores de execução renova-se essa característica, sendo evidente que a sua função os coloca como verdadeiros auxiliares dos tribunais e já não como mandatários forenses dos cidadãos, despidos que actuam de animus defendendi.
9 - Cfr. art.° 12.° da Lei n.°21/85 de 30 de Junho.
10 - Cfr. al. a) do n.° 2 do Decreto-Lei n.° 343/99 de 26 de Agosto.
11 – Cfr. Nº3, do artº 110º do Estatuto dos Solicitadores.



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Editado por am

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